sábado, 8 de fevereiro de 2014

MORO NO JANGADEIRO


Na verdade, já fiquei muito tempo matutando o porquê desse nome. A conclusão que chego é sempre a mesma: A julgar pela experiência, creio ter sido alguém que ao ver  o descaso público com que se trata o povo da periferia, resolveu nomear o lugar indicando suas ruas alagadas pelas enchentes, que somente com jangadas e, consequentemente, com a ajuda de um bom jangadeiro, a população poderia salvar-se. É, acho que faz sentido... Mas, o endereço não ficaria completo se eu omitisse que meu bairro pertence ao distrito do Capão Redondo, outro bairro irmão do meu.

Capão Redondo... Ninguém merece morar em um lugar com esse nome! Li na internet que o nome “Capão” foi motivado pela capoeira (matagal) que rodeava o lugar, antes dele ser populado, e “Redondo”, porque ficava num local alto de onde se via os quatro cantos. 

Se isto é verdade não sei, mas, supondo que  assim fora, talvez a mesma fertilidade da terra em produzir matos tenha atingido seus moradores para gerar gente. Em cada beco há dezenas de casinhas de cujo interior brotam tantas pessoas como se fossem galhos de árvores frutíferas em plena estação. Quanto ao nome “Redondo”, não sei se a informação que colhi da internet procede, mas, sem dúvida, coincide com a situação dos moradores deste bairro que apesar de viverem correndo dia a dia para vencerem na vida, estão sempre andamos em círculos e voltando ao mesmo lugar: ao centro da miséria, de onde só podem ver de longe os que, a custo de seu trabalho, vivem no centro da riqueza de nosso país.

E a rua?... Abílio César. Demorei a descobrir que tipo de pessoa era esse Abílio:  desbravador, general, capitão, imperador ou político brasileiro renomado. Mas, a persistência me levou a informações populares que afirmava ter sido o Abílio um dono de terras aqui da própria área.  O César que ostentava no nome nada tinha a ver com os imperadores romanos. Era, na verdade, um “jangadeirense”. Dono de terras na dita rua e um cabra muito rico aos olhos dos muito pobres que povoavam essa vila. Era um sujeito cheio das terra! – contavam, em seu português sem glamour, os periféricos mais antigos, os contadores de história do bairro.

E isso tem muito em periferias: Sempre há um bom contador de histórias. Um sabe-tudo da região. Geralmente são idosos, cujo benefício dos anos lhes dá toda a liberdade de acrescentar um bocadinho aqui, um bocadinho ali, já que seus ouvintes não estiveram lá para desmenti-los. Adoram contar do passado como sendo “os belos anos dourados que não voltam nunca mais”. Se viveram na guerra fria ou participaram da segunda guerra mundial - fatos históricos nem um pouco desejados por ninguém – afirmam não mais haver gente tão patriota e valente como os camaradas daquele tempo. De qualquer modo, aquilo sim, era tempo bom!!! E não é que com essa conversinha saudosista e o jeitinho de contar vantagem pra cima da gente, eles se mostram inspiradores para a nova geração!!!

 Voltemos ao Janga. Desculpe, esqueci de frisar que esse é o nome carinhoso que os “jangadeirenses” dão ao nosso bairro. Os jovens adoram gritar o jargão: Moro na maloca, mesmo, e com muito orgulho! Talvez, aprenderam com os velhos contadores de história a fazer limonada dos limões de sua vila. E, enquanto sentem orgulho da miséria ela vai crescendo cada vez mais: São casas sendo construídas sobre o córrego que beira as casas (ou melhor, as casas que beiram o córrego que já estava lá  quando os moradores construíram em seu leito); São as enchentes que devastam as casas por causa das construções que barram a passagem das águas e as fazem transbordar; São as límpidas águas do córrego, que ao invés de peixes, exibem os dejetos despejados pelos esgotos feito pelo povo; São encomendas que não chegam porque o carteiro foi roubado e tem medo de trabalhar na área; São entregas de lojas rejeitadas pela violência do lugar e assim por diante.

Não acho que isso é motivo de orgulho, mas de vergonha.   Porém, ninguém gosta de viver com vergonha de sua situação, então, mentimos que temos orgulho.  

Campanhas após campanhas incentivam nossos jovens a se apropriarem de seus espaços, que lhe são por direito. Idas aos shoppings, cinemas e outros lugares de lazer e cultura. No entanto, se em um lugar luxuoso detecta-se qualquer vestígio de pobreza, na roupa, calçado, ou até mesmo nos trejeitos do pobre infeliz, imediatamente, o preconceito grita nos olhos dos seguranças que a periferia não é bem vinda em tais locais. A desgraça da pobreza é tão desgraçada que os próprios pobres repelem os de sua classe, como se vê no infeliz trabalho dos seguranças, que, apesar, de a grande maioria ser de pobres, tem por ofício, ter preconceito contra os periféricos.

E, com que cara estacionaremos o nosso fusca ou nosso bem cuidado fiatizinho nos estacionamentos de um Shopping Iguatemi ou em frente a um restaurante nas áreas dos Jardins? Não, os mais tímidos ou talvez, os mais racionais, simplesmente preferem não ir a ser humilhados.

Daí vem a explicação do jargão da mocidade que diz sentir orgulho de sua pobreza. Não creio que seja orgulho, mas gratidão por serem aceitos como são: Pobres e sonhadores. Aqui, no Janga, os sonhos não têm preço. No mundo dos ricos, todavia, é proibido sonhar. Lá é lugar de quem já realizou sonhos, lugar de vivê-los. Na periferia não, é a maior fábrica de sonhos do mundo. Por isso um determinado político, acometido por um segundo de lucidez e sinceridade, afirmou com toda razão: A pátria do pobre está sempre no futuro.

Assim, como autêntica periférica, uno a minha voz sem som algum para os poderosos, mas, bem entendida para os irmãos de classe social:

Lutemos, irmãos periféricos de todas as vilas, equipando-nos das armas do conhecimento, para que no futuro as lágrimas que derramamos a cada vez que não conseguimos alçar um objetivo, nos leve, qual bom jangadeiro, a guiar a jangada de nossa vida até o porto seguro de nossos ideais.

Leila Castanha
02/2013